A História é o presente

O grande carvalho que servia de moradia ao Alquimista-mor estava completamente abafado por dentro, tudo por conta do verão, o que foi uma ótima desculpa para a aula daquele dia ser ao ar livre. Todos no vilarejo estavam aproveitando a tarde fora de casa para sentir um pouco a brisa e por as roupas para quarar ou secar. O casarão do Barão e o Paço Baronal não eram muito distantes da árvore e por isso, todos os funcionários do Paço se questionavam a respeito dos métodos pouco ortodoxos que o alquimista Andrei tinha com seus aprendizes.

Andrei, Rosana e os alunos estavam sentados em roda sobre a grama, de pernas cruzadas e apoiando o peso de seus troncos sobre os braços. Naquele círculo de seres felizes — alguns até com os olhos quase fechados de tão grandes os sorrisos — Rosana amassava algumas ervas em um pequeno pilão, enquanto o cachimbo de seu mestre circulava para que todos pudessem compartilhar do resultado de suas ótimas misturas vegetais. Ela estava concentrada no que fazia e na conversa sem rumo de seus companheiros, que sempre questionavam Andrei sobre os segredos e mistérios do mundo.

Ela sorria por estarem todos contentes com sua criação, mas ainda sentia o aperto no coração de saber que aquela alegria talvez pudesse mascarar críticas reais de seu trabalho e que poderia não ser tão boa quanto achava. Esse tipo de pensamento era frequente, uma vez que a demanda por seus produtos naturais era alta, mal tinha tempo tempo para verificar se os usuários de seus serviços tinham alguma crítica.

Porém, sua concentração parcial foi quebrada quando um aluno começou a tossir descontroladamente. A animação em seu peito não poderia ser maior, talvez ele estivesse tossindo por conta de alguma erva errada, talvez aquilo fosse um indicador da qualidade de seus produtos, talvez quando ele voltasse a respirar normalmente, fosse dizer que estava horrível. Ele parou de tossir após alguns instantes.

–Desculpa, galera, me engasguei com a saliva — todos riram aliviados, até mesmo Rosana riu com um sorriso amarelo — mas mestre, acho que quebrei seu cachimbo…

Rosana observou Andrei desmanchar seu sorriso e sua testa se enrugar numa expressão de leve desolação e insatisfação.

–Acha que quebrou? Você esmagou ele todo no chão! Ah, cara, que vacilo. Mas tudo bem, você engasgou aí. Ta tudo certo, fica em paz.

–Desculpe mestre, não vai se repetir…

–Não precisa pedir desculpa, fica em paz.

–Mas, se eu puder…

–Refazer a cagada que tu fez?

–Desculpe…

–Fica na paz, vai tomar uma água, respira. Tá tudo bem, ninguém morreu. Na verdade, pode todo mundo ir embora, estão liberados das lições de hoje. Você não, Rosana, pode sentar aí.

Todos, menos a garota, foram embora e nessa hora Andrei pôs-se a chorar.

–Mestre Andrei, não fique triste. Imagino que o cachimbo deva ter algum valor sentimental para o senhor, mas não acho que seja o fim do mundo, há outros cachimbos. Afinal, mestre, a verdadeira alegria são os cachimbos que fumamos pelo caminho.

Ela sorria para aqueles olhos castanhos e tristonhos que se fecharam num riso amarelo.

–Sabe o que é, Rosana, aquele cachimbo era especial, a gente tinha passado por poucas e boas. Foi o primeiro cachimbo que fumei depois da guerra com os Baronatos Livres. Esse cachimbo nem era meu, ganhei numa aposta. Tô magoadão, na moral velho, ele carregava muitas boas lembranças. Não… ele carregava só boas lembranças… boas e relaxantes.

–Mas, mestre, o senhor não teria outro?

–Rosana, um cachimbo é uma relação monogâmica. Agora tenho que achar outro… nem sei se vou achar, porque aquele teve uma história.

A aprendiz se compadeceu de seu mestre, nunca o havia visto cabisbaixo daquela forma. O silêncio entre os dois, enquanto Andrei olhava perdido para a grama, serviu para Rosana correr pela sua mente para pensar em alguma solução. Sem pestanejar, agarrou uma lembrança que talvez pudesse resolver o problema de forma efetiva.

–Eu acho que sei o que posso fazer pelo senhor. Tem uma caravana de comerciantes acampada numa estrada não muito longe daqui. Observei que estavam com muitas caixas quando fui buscar algumas ervas perto do lago que tem a cachoeira. Talvez eles tenham um cachimbo com uma história tão boa quanto a que vocês viveram, mestre, o senhor e seu cachimbo que agora está em cacos.

–Não quero um cachimbo com uma história qualquer. Aquele tinha uma história comigo. Mas não precisa ficar com essa cara triste, assim, desse jeito fica melhor — as mãos do mestre apertavam as bochechas de sua aprendiz — mas ó, gostei da tua ideia. Acho que rola até, devem ter uns cachimbos com histórias maneiras. Você acha que consegue trazer até a hora do sarau?

–Consigo sim, pode deixar comigo, mestre, não vou decepcionar o senhor como decepciono á mim mesma todos os dias quando me frustro com minha inabilidade com alguma tarefa.

A fala, chiada e contida devido as bochechas apertadas, fluiu até as orelhas peludas de Andrei, passearam por seu ouvido e provocaram um sorriso largo em seu rosto, e com isso soltou Rosana. Após uma pequena reverência, seguiu trilhas afora, as vezes olhando para trás e vendo seu mestre se despedindo com um aceno e um sorriso reconfortante, acompanhado do olhar calmo e vago que apenas um sábio poderia possuir.

A aspirante a alquimista andava o mais rápido que podia, até mesmo precisando desviar a atenção de líquens, cogumelos e ervas que encontrava pelo caminho. Sua mente afiada imaginava misturas para todos os compostos que encontrava e era torturante se concentrar em não pensar naquele trabalho . Aquilo, por si só, já era algo que permitia o ciclo de exaustão mental que a martirizava todos os dias: pensar em sua técnica não era o suficiente para se tornar melhor, era necessário que praticasse, mas mesmo seus trabalho sendo muito bons, não conseguia deixar de querer praticar mais.

Os pensamentos que pesavam em seu coração rapidamente se dissiparam quando avistou o acampamento. Havia vários compradores e muitas carroças abertas vendendo tapetes, fumo, especiarias, gaiolas, armas, toda sorte de equipamento. Haviam também prestadores de serviços, como ferreiros especializados em panelas, escrivães que faziam desde documentos até cartas de amor e até mesmo um dentista velho e com mãos imensas que utilizava aparelhos muito pequenos, que pareciam não ter sido pensados para seus grossos dedos quadrados.

Rosana ficou encantada, buscou se desviar dos artífices e vendedores de ervas, procurou focar sua atenção em procurar alguém que estivesse vendendo artesanatos de madeira. Havia uma carroça que vendia caixões e seus olhos brilharam por notar padrões, entalhes e motivos que lembravam sua cidade natal, pensou que não seria algo ruim se fosse cumprimentar um conterrâneo, mas ao se aproximar, notou melhor os entalhes. Os desenhos poderiam ser os mesmos, mas a técnica era diferente, ela se indignou e fechou a cara para o vendedor que já se aproximava com um sorriso ardiloso. Retomou seu caminho para buscar um cachimbo especial e procurou não se distrair com mais falsificações.

O acampamento era bem grande, possuía três ruas paralelas e uma grande que perpassava todas no meio. Conforme o tempo passava, o público aumentava e era mais difícil ver o que tinha em cada carroça, talvez pelo fato de todos serem mais altos que ela. As carroças eram grandes o suficiente para ter as mercadorias e servir de quarto para aqueles comerciantes. Infelizmente, suas bancadas eram altas demais. Porém, após alguns minutos de procura, ela finalmente achou um vendedor que possuía vários cachimbos iguais, estavam dispostos em uma corda no toldo de sua venda como se fosse um cacho de bananas.

–Oi, senhor comerciante! Prazer, sou Rosana. Vejo que o senhor tem muitos cachimbos, gostaria de saber se tem algum modelo especial. Não precisa pegar o cacho todo, eu gostaria de saber se teria um com alguma história, um cachimbo de aparência e passado únicos.

O homem tamborilou seus pálidos dedos no balcão e seu enorme sorriso quase brilhava mais do que seus cabelos louros. Ele parecia ter ficado muito animado com o pedido da alquimista e seus olhos cintilavam de paixão pela emoção de uma venda para uma cliente que sabia o que procurava.

–Bom, vejo que aprecia cachimbos diferenciados, minha nobre cliente. Me chamo Sírio Botinhas, prazer. Acho que tenho alguns que podem ser de seu interesse. Aqui está, vou colocar uma escadinha para que você possa ver melhor meu baú com essas peças sofisticadas.

Rosana subiu a escada de madeira e ficou cara a cara com o baú que o mercador abriu sobre o balcão. Havia poucos cachimbos, mas todos de modelos únicos, entalhes de cobras, caveiras, borboletas, castelos, navios, cachimbos de madeiras de todos os tipos e cores, de osso, de metal e vários outros tipos de materiais. Os olhos da cliente brilharam, eram todos muito bonitos.

–Ah! Vejo que é uma jovem que sabe reconhecer obras de arte, vejo em seus olhos. Pode pegar, todos foram feitos por diferentes diferentes culturas e em diferentes tempos. Este que você pegou pertencia a um mago mendigo que era conhecido por suas vestes cinzas, de tão encardidas, e sua longa barba. Ele morreu de gripe, mas era um senhor muito simpático. Este outro pertenceu a um Investigador Especial Ducal, um sujeito insuportável que achava que sabia de tudo, mas mesmo com uma mente afiada, não ganhou de mim no carteado. Gosto de fazer meus clientes rirem assim, seu sorriso mostra que está gostando dos produtos. Mas então, o que achou?

–Bom, senhor Botinhas, todos são muito lindos. O que acontece é que meu mestre teve o cachimbo dele quebrado e ele ficou muito triste porque tinha passado muitas aventuras com ele, por isso estou procurando um especial. Meu mestre não gosta de coisas muito ornamentadas, sabe? Ele prefere a simplicidade da natureza. O senhor teria algo que teria uma conexão com o mundo natural?

Sírio rapidamente fechou o seu baú e fitou a moça enquanto fazia um bico com os lábios fechados e emitia um som anasalado, indicando que estava vasculhando sua memória.

–Acredito, moça, que sei o que quer, mas não será barato…

–Não tem problema, senhor. Aqui vocês só aceitam dinheiro, ou também fazem trocas?

–Fazemos de tudo, se for útil para nós, dinheiro, ou mercadoria, nós aceitamos!

–Perfeito, sou muito boa com misturas de ervas. Muito boa mesmo, infelizmente, é quase como uma maldição em que eu mesma me enfiei. Posso dar as misturas que faço para meu mestre…

–Rosana, nós aceitaremos com certeza, não precisa chorar, se é tão boa assim, deveria se orgulhar!

–É difícil, eu sei que sou boa, mas sou boa o suficiente? Um dia vou achar algum crítico que me convença. Mas por favor, me mostre o cachimbo, então.

–Não está comigo, está com nosso rei. Siga o Sírio Botinhas aqui e não estará perdida! Venha!

A dupla seguiu pela rua e virou na grande avenida, após andar um pouco, Rosana avistou uma carroça que se destacava das demais no meio daquele pequeno mercado itinerante. Se destacava porque era muito mais ornamentada que as outras e se abria no meio, proporcionando um amplo espaço onde uma tenda havia sido feita partindo das paredes da carroça. Dois homens grandes guardavam a frente da porta composta por vários fios de cristais coloridos, Sírio cumprimentou os vigilantes de forma amistosa e entrou com Rosana num amplo espaço cheio de tapetes, luminárias redondas e coloridas, incensos e uma fogueira no meio, cuja fumaça saia por uma abertura circular no teto e essa, por sua vez, possuía uma de outra cobertura superior para proteger o vão da chuva.

–Senhor, líder deste mercado itinerante, Rei Cipriano da Capa Verde, por favor, peço que receba Rosana, uma cliente de gosto refinado que procura um cachimbo especial para seu mestre. Um cachimbo que simbolize o coração da natureza e acredito que o senhor tenha exatamente o que ela procura. Rosana, peço licença, a deixarei com nosso sábio líder, voltarei para minha carroça, outras vendas me esperam! Tenha um maravilhoso dia!

Mal pôde abrir a boca e Sírio desapareceu passando pela porta de fios de cristais. Ela então se virou e observou a figura sentada num trono de madeira no fundo da sala. Era nitidamente um ancião, mas sem barba, possuía longos cabelos loiros que caiam sobre seus ombros e escorriam pela pele escura de seu peito, escura assim como a cor de seus olhos. Sua coroa era de ouro e possuía joias que cintilavam com a luz do fogo e suas roupas eram completamente verdes. Botas, calças, a camisa de manga curta desamarrada e aberta até o peito e sua mítica capa verde repleta de bordados de ouro, presa por uma corrente dourada que se agarrava em seu pescoço. Ele estava apoiado sobre sua longa espada de cabo dourado e empunhadura de tecidos verdes. Possuía anéis, brincos, braceletes e correntes. No entanto, o que fez Rosana se arrepiar era sua expressão séria. Os olhos severos revelavam uma sabedoria antiga e as chamas que dançavam, neles refletidas, mostravam que aquele senhor tinha a liderança em seu coração. Através do fogo, ele olhava nos olhos da aprendiz e parecia se apresentar com toda a sua imagem, como um quadro carregado de simbolismos. Era claramente um guerreiro habilidoso, um comerciante implacável e um rei sábio. Este era Cipriano da Capa Verde.

A aprendiz de Andrei se aproximou com cuidado e se posicionou entre o rei e sua fogueira. Quando abriu a boca, o rei levantou a mão que não estava apoiada na espada e ela se calou.

–Caríssima, a que devo a honra de sua visita?

–Bom, como Sírio disse, vim comprar um cachimbo único para meu mestre, o Alquimista-mor Andrei. O dele foi quebrado e era um objeto que passou muito tempo com ele. Era algo de grande valor sentimental. Sei que não vou conseguir reparar isso, mas acredito que se trouxer um que reflita seu amor pela natureza e que seja verdadeiramente único, ele ficará menos triste e… por que o senhor está me olhando assim?

O semblante do ancião estava muito mais duro e sua expressão parecia dizer que aquele homem estava revivendo muitas memórias antigas. Rosana deu um pulo para trás quando o velho rei esmurrou o braço maciço de seu trono.

–Andrei deixou o meu cachimbo ser quebrado?

–Era o seu cachimbo senhor?

–Aquele sacana ganhou de mim numa aposta!

–Acho que mestre Andrei comentou sobre, por favor não se zangue!

–Me zangar?

O líder idoso se levantou de supetão, rindo alto e revelando seus dois metros de altura. Enquanto gargalhava , se dirigiu a Rosana que ria com um sorriso amarelo, revelando sua confusão e desespero, até ser pega pelos ombros e aquele homenzarrão a levantar na altura dos olhos.

–Andrei, aquele pilantra, se tornou um grande amigo meu! Ele virou uns tônicos na boca quando saquei minha espada, lutamos e forjamos nossa amizade numa briga. Você não vai comprar nada, vou dar de presente para ele um cachimbo maravilhoso, mas você deve ficar para a nossa janta. Teremos música, muita comida e dessa vez contarei a história desse cachimbo e amanhã, pela manhã, você poderá partir descansada e dizer que o Rei Cipriano da Capa Verde que mandou o cachimbo para ele. Combinado?

–Sabe o que é, eu não disse que ia passar o dia fora…

–Combinado! Tome essas fichas e compre algo bacana para você, uma aprendiz do meu amigo é minha amiga. Te aguardo hoje depois do por do Sol.

–Tudo bem, senhor. Obrigada senhor. Agora o senhor pode me por no chão?

–Claro, claro, tenho que fazer alguns preparativos pra de noite e arranjar algum lugar para você ficar. Hoje você é minha hospede.

O homem de verde continuou falando algumas coisas sobre Andrei enquanto se afastava e entrou por uma porta de madeira, que Rosana pensou dar acesso a um dos lados daquela enorme carroça.

Ela então pegou suas fichas e voltou para as barracas. Não sabia exatamente o que compraria, mas pensou que “já que é de graça, preciso escolher algo que valha a pena”. Perambulou por todas as vendas, olhou cada produto, passou horas fazendo uma lista que, ao invés de ajudar, acabou a confundindo mais. Talvez só comprasse um pilão novo para macerar suas ervas, mas o pensamento sumiu tão rápido quanto o bloco de notas em sua mão.

–O que é achado pode ser roubado, queridinha! E pode ser extorquido também. Gosta deste caderninho? Você pode comprar com suas fichas!

Rosana ficou completamente atônita, a figura na sua frente era de uma mulher vestida totalmente de preto e branco. Usava uma calça curta preta, longas meias brancas que iam até os joelhos, sapatos pretos com guizos dourados, uma camisa preta cheia de botões que pareciam gemas preciosas, uma faixa branca na cintura com guizos no final, uma longa gola branca que pendia pelos ombros, uma máscara branca que cobria tudo menos sua boca e um chapéu preto com duas pontas alongadas que quase tocavam o chão com os guizos em suas extremidades.

–Escuta, senhora, acho melhor me devolver. Eu tenho uns contatos, a senhora não sabe com quem está mexendo.

–Ah! Que fofa! Ficou vermelha de raiva. Oh! Minha linda, eu estava apenas brincando, tome aqui seu bloquinho e por favor, não me leve a mal, note as pessoas ao seu redor, estão rindo de você e está minha função! Faço piadas e humor nas ruas para divertir todos os clientes. Se eu fosse te roubar, nossos guardas já teriam cortado minha cabeça e a posto numa lança com um único movimento! Desde que, é claro, ninguém diga nada para as autoridades… Posso saber o que vai comprar?

–Bom, estou decidindo ainda, coloquei alguns itens, mas tem tanta coisa…

–Ora, é simples, do que precisa?

–Preciso… não sei, na verdade eu tenho já o que eu preciso, talvez eu compre só alguma coisa para substituir algo que eu tenha e já esteja velho… tem algo para pessoas que não sabem o que decidir? Aliás, meu nome é Rosana.

–Prazer, Rosana. Eu não tenho nome, pode me chamar do que quiser. E não, não temos nada que possa te ajudar com seu terrível problema. Mas, também porém, se você tem uma lista, é porque gostou de tudo, mas não pode comprar tudo. Só há uma coisa a ser feita.

Novamente a moça tomou o bloco da mão de Rosana, arrancou a página com a lista e pôs na boca.

–Não! Que horror.

A mulher não deu atenção para a indignação da moça, apenas mastigou o papel repetidas vezes e o cuspiu na mão coberta por uma luva branca. O papel estava todo babado, manchado e rasgado, mas só havia um item sendo mostrado.

–Ah! Veja que maravilha, Dona Rosana, você deverá comprar ceroulas de inverno! Magnífico, sempre que estiver em dúvida de algo, faça isso. Venha, vou te levar até o local, sei que é sua primeira vez aqui e pode demorar para achar onde você viu esse item! E aqui, tome seu papel.

–Ah, obrigada, eu acho. Bom, então mostre o caminho… hmm, Guizo. Posso te chamar assim?

–Vemos que sua criatividade para nomes é tão grande quanto minha capacidade de ser impedida de roubar um bloco de notas.

Rosana não viu problema em segui-la, mesmo que depois de toda aquela cena tivesse ficado mais atenta aos seus bolsos. Chegaram onde a jovem tinha visto o item, ela entregou suas fichas ao lojista e a dupla continuou, junta. A mulher sem nome contou diversas histórias para Rosana, disse que era filha de duas modestas comerciantes na capital dos Baronatos Livres. Uma de suas mães havia falecido por conta de uma doença misteriosa, mas a sua outra não mediu esforços para cria-la num mundo lúdico e tranquilo. O comércio prosperou bem até ela completar 10 anos, quando o Duque Apolinário iniciou a campanha de reconquista de todo o território.

A guerra foi rápida, mas sua mãe foi convocada para lutar e Guizo foi morar com sua tia avó, que era líder de uma trupe de artistas itinerantes. Infelizmente, sua mãe ficou no regimento do barão da capital e não no de seu filho. Quando as tropas do herdeiro se uniram com as de Apolinário, o grupo de sua mãe não teve chances, mas disse para Rosana que o Duque mandou fazer um novo cemitério para as guerreiras e guerreiros que morreram durante a reconquista e que sua mãe estava na quadra de honra.

Desde então ela viajou de caravana em caravana com sua tia avó e com o tempo foi aprendendo e aperfeiçoando as técnicas de entretenimento. Como sabia ser uma palhaça, ilusionista e dominava a secreta arte do Teatro de Sombras, não foi difícil ganhar certa fama, algo que lhe rendeu o patrocínio da Marquesa Thereza, uma das nobres escaladas para administrar um pedaço do território de seu antigo país. Foi nesse meio tempo que sua tia avó faleceu. Infelizmente a marquesa sempre foi criativamente limitada, uma mecenas que não dava muita liberdade para Guizo poder criar e aprender coisas novas e nem mesmo com a habilidade de desafia-la. Após anos no Paço da Marca e de mais guerras, a ilusionista rasgou o contrato e voltou a se apresentar por conta própria, até achar a caravana comercial do Rei Cipriano e começar a trabalhar com eles.

–Poxa, sinto muito pelas suas perdas, você deve ter ficado muito assustada na época.

–Com certeza fiquei, em tempos de guerra perdemos a perspectiva de um futuro luminoso, ironicamente o meu futuro sempre se baseou no teatro de sombras. Sinto falta de minhas mães, mas sei que agora suas almas estão unidas ao continente e se sentindo completas, mas também espero que tenham gostado das coisas que conquistei.

–Bom, tenha certeza que gostaram, afinal, cumpriram seu ciclo com um legado muito bonito, que é uma filha que possui um dom artístico que estou curiosíssima para ver.

–Obrigada, mas acredito que você não vai demorar para satisfazer sua curiosidade. Todos já estão fechando suas lojas e logo estarão reunidos em frente a tenda do rei para o jantar, onde ele irá contar uma história, que gosto muito, e irei fazer o teatrinho.

Como Guizo havia dito, todos os comerciantes já haviam se estabelecido em roda na frente da carroça de Cipriano. Alguns jovens com roupas pretas e brancas estavam montando uma estrutura na entrada da tenda composta por uma grande moldura de madeira completamente entalhada com diversos tipos, faces, corpos, criaturas e vegetais, e um enorme tecido branco que se prendia nas extremidades da moldura. A alquimista pôde ver os assistentes de Guizo prepararem também uma estrutura de espelhos que projetava a luz da fogueira inteira da tenda do rei para a tela branca enquanto o público se arrumava com almofadas e esteiras, além de prepararem seus fogareiros, panelas e outras louças.

Guizo então levou Rosana até um grupo sentado, a apresentou e se despediu. O grupo era bem convidativo, eram dois casais e um deles tinha um filho com cerca de 7 anos, que brincava com um pequeno arco, mas sem as flechas.

–Então Rosana, meu nome é Ervígio, este é meu marido, Áspar, meu irmão, Gideão e minha cunhada, Tremissa. Torre disse que a história de hoje seria feita em sua homenagem, nos conte o motivo, acho que falo por todos quando digo que ficamos surpresos e curiosos.

–Conto sim, mas o nome dela é Torre, então?

–Meu cunhado não é muito criativo. Ela nunca nos disse seu verdadeiro nome, se é que tem um, mas decidimos a chamar de Torre, foi a primeira coisa que passou na cabeça de dele.

–Sim, criatividade não é o ponto forte dele, quando me pediu em casamento foi um pedido bem simples. Foi fofo, muito bonitinho, não é amor? É a simplicidade que torna a coisa especial. Mas vamos deixar isso pra depois, vamos, nos fale, por que Cipriano decidiu te homenagear? Ele já te conhecia?

–Ah! Isso foi muito fofo. Mas não, ele não me conhecia. Na verdade, ele disse que conhece o meu mestre, o Alquimista-mor Andrei. Quebraram o cachimbo dele e decidi vir procurar por um que seja muito único e especial. Lembrei de ter visto o acampamento de vocês e decidi procurar aqui. O senhor Da Capa Verde foi muito gentil, apesar de as vezes me assustar, e disse que conhecia o senhor Andrei e o daria um cachimbo muito especial. Disse também que contaria história do objeto hoje.

–Ah! Que maravilha, é uma honra receber a aprendiz de um amigo de nosso líder, ainda mais um amigo tão influente, sinta-se a vontade, coma de nossa comida e lembre de dizer para Cipriano que eu e minha família a recebemos muito bem.

–Pode deixar que falarei sim, senhor Ervígio!

Cada família tinha sua própria janta e todos tinham algum tipo de marcação em sua louça. Rosana notou que todos compartilhavam seus alimentos passando suas tigelas e caçarolas uns para os outros, ninguém precisava se levantar, se alguém numa ponta precisava de algum ingrediente, bastava gritar e da outra ponta viria, e para lá voltaria, o item de mão em mão. Quando todos pareciam estarem com suas refeições prontas, uma enorme sombra se projetou na tela branca, ela diminuiu um pouco e se moveu pela lateral para revelar a imagem do grande ancião saindo por detrás da moldura com seu olhar severo, como era de costume. Ele observou todo o seu bando, pôs as mãos na cintura enquanto suspirava pesadamente e abriu um largo sorriso, como se estivesse orgulhoso de toda aquela cena.

Algumas pessoas notaram a presença de Cipriano, aos poucos foram parando de falar e começaram a saudar seu líder. Guizo apareceu logo atrás, sem chapéu e revelando seus longos e negros cabelos cacheados e com mechas brancas, trazia em seu rosto um largo sorriso e os olhos emoldurados pela máscara pareciam serenos e calmos enquanto ela ia para o centro da roda.

–Amigos! Amigos! Hoje nossa história será especial! Sim, sim. Maria, se você se emocionou na última, por favor, contenha-se dessa vez! Sua esposa merece paz para apreciar a história e não deveria ficar enxugando suas lágrimas! Ah, você ri, não é? Bom espero que tenha me escutado. E você, Carlos, por favor, vê se come em pequenas porções e toma um pouco de água, ou vinho, porque seus soluços atrapalham a concentração de meus músicos! E falando em música, Sol, diga para seus filhos pararem de cantar as canções. Ou eles escutam, ou entram para minha trupe! Velho Umberto… você já sabe, Velho Umberto! Enfim, peço encarecidamente que me ignorem solenemente, se emocionem, cantem, dancem, festejem, comemorem a vida, pois hoje nosso rei separou uma história impar para entretê-los, sua voz ecoará por nossos ouvidos e corações, como sempre fez e fará. Sobre ele, assim dizem as canções!

Todos aplaudiram e riram, inclusive Rosana, que agora já estava mais confortável com as brincadeiras estranhas de Tronco, ou Guizo, mas ainda preferia se manter atenta aos seus pertences.

–Ervígio, esse pessoal não fica bravo com ela não?

–Ah não, é que você é de fora, mas já estamos acostumados com essas brincadeiras. Vai por mim, você não viu nada, se ela diz essas verdades inconvenientes de brincadeira, nem queira ver como ela fica quando se zanga com alguém…

Rosana apenas riu e tomou uma caneca de cerveja numa golada só, o que fez escorrer um pouco por seu queixo e ainda ganhou um bigode de espuma, que ela limpou rapidamente com a língua. Enquanto Guizo ia para trás da moldura, Cipriano toma seu lugar no centro.

–Amigos, obrigado pela sua presença hoje. Neste dia, a aprendiz de um velho amigo meu nos veio fazer uma feliz visita e através dela entregarei um presente para seu mestre. Este presente é um cachimbo muito especial e possuidor de uma das histórias que eu mais aprecio, particularmente falando. Faço isso pois este meu amigo merece, ganhou de mim numa aposta, há muito tempo, um velho cachimbo que eu tinha. Brigamos feio naquele dia, mas na semana em que ficou hospedado na mesma estalagem que eu, ficamos muito amigos, rimos e bebemos muito, mas isso tem anos e desde então nunca mais o vi. Mas agora enviarei este presente através das mãos de Rosana, aquela senhorita muito simpática! Palmas para ela!

Toda a atenção da roda se voltou para Rosana, que imediatamente ficou vermelha de vergonha. Ela sorria um pouco nervosa e sem saber o que fazer, começou a aplaudir enquanto se questionava se deveria, ou não, estar aplaudindo a si mesma e quando aquilo acabaria. Os aplausos morreram aos poucos e aos poucos Cipriano retomou a atenção de todos.

–Muito bem, prestem atenção, pois, não tenho o hábito de contar a mesma história dentro da mesma década. Bom, era uma vez uma floresta encantada que há muito tempo atrás abrigava um povo feito de vegetais. Uns dizem que foi muito antes da Era dos Reis Magos, talvez até mesmo muito antes antes da fundação do império. Ninguém sabe dizer ao certo onde foi e alguns poucos duvidam até mesmo de que tenha sido neste mundo!

Enquanto o rei falava, figuras sombrias surgiam no tecido branco, não pareciam ser figuras que dedos humanos pudessem fazer e nem pareciam terem sido recortadas em papel. Rosana ficou maravilhada com os desenhos que se movimentavam de maneira fluída. Quando os reis magos foram mencionados, um perfil de um ancião curvado, o de um homem e o de um outro com chamas ao seu redor apareceram, e pareciam se movimentar como pessoas de verdade quando se viraram para encarar a plateia e depois aquela figura coberta pelo fogo lançou seu ardente poder por toda a tela até tudo se escurecer.

–Esse povo era muito semelhante conosco, mas seu sangue era seiva, sua pele era composta por líquens coloridos, sua carne era de madeira e seus olhos eram flores redondas e completamente coloridas. Eles costumavam a se fixar em alguns pontos da floresta e depois partir para permitir que o local, por onde passaram, se regenerasse e procuravam obter recursos de outros lugares. Eles se alimentavam de tudo um pouco e mesmo que não ficassem num único local de seu território, eles sentiam toda a floresta ao mesmo tempo. Dessa forma, todos estavam profundamente conectados entre si, com o local que viviam e com o continente, Trophe. Dizem que nunca tiravam os dois pés do chão e só tiravam se estivessem encostados em algo que mantivesse esse laço, como o tronco de uma árvore.

As sombras continuavam se movimentando como se vivas fossem. Subiam e desciam fazendo contornos de árvores, de seres humanoides que caminhavam e formas que Rosana não conseguiu compreender, mas apenas com o que viu pôde ter uma visão muito clara do que era aquela conexão que o senhor Cipriano contava que os seres possuiam. Ela olhou a cara de seus companheiros de janta e todos estavam maravilhados, mesmo tendo visto várias daquelas apresentações, aparentemente, não conseguiam deixar de se impressionar.

–Esse povo comia, bebia, dormia e tinham filhos, como nós, mas nunca morriam.

Ao ouvir isso, Rosana sentiu um enorme arrepio, “um povo inteiro que não morre deveria ser um povo em eterno sofrimento” pensou ela. Ela inclusive ficou chocada com o fato de decidirem ter filhos sabendo que eles não morreriam, “eles deviam ser muito egoístas por condenar alguém a viver para sempre, alguém que nem mesmo poderia saber o que é viver” mas continuou a ouvir a história. A criança de seu grupo estava entretida com as sombras, mas as vezes voltava a brincar com seu arco de madeira. Gideão se divertia ao observar o filho se entretendo tanto e batucava nas coxas com o ritmo da música, até que olhou para Rosana e sorriu, apontando para algumas frutas. Ela pegou uma maçã.

–Mas esta história não é sobre este povo todo e sim sobre uma criança que estava com eles. Uma pequena criança curiosa, que gostava de investigar tudo, inclusive coisas perigosas e que vou chamar de Saguí, pois seu nome já se perdeu. Um dia, uma grande tempestade passou pela floresta. Muitos raios caíram do céu e o povo de Saguí se abrigava em suas cabanas desmontáveis. Todos meditavam, sentindo as gotas da chuva na floresta, sentindo a água fluir pelo solo como se fosse sobre suas peles, sentindo cada parte de seus corpos e esperando a tempestade cessar. Mas a criança percebeu algo um pouco distante de seu acampamento, sentiu algo que nunca havia sentido. Era como o calor dos animais que deitavam na terra, mas era mais forte, quase a deixava com medo, mas ela queria saber o que era, por isso observou se os adultos estavam olhando e quando viu a oportunidade, fugiu em meio a chuvarada.

Rosana estava tão compenetrada nas imagens, que demorou para se questionar como Guizo estava fazendo as sombras para representar a chuva. Era muito impressionante dar um aspecto tão vivo e real para as personagens, mas um detalhe tão fino como aquele ela nunca tinha visto igual, em nenhum momento de sua vida.

–Saguí correu o mais rápido que pôde pela mata densa, cheia de troncos com raízes enormes, pequenos vegetais com grandes folhas e diversos cipós, mas como sentia tudo ao seu redor, não era difícil saber onde pisar e por onde andar. Correu, correu e correu, quase que seu peito não conseguia aguentar aquela carga pesada e quando chegou, ofegante, pôde ver algo que nunca, jamais, havia imaginado. A pétalas de seus olhos desabrochavam sutilmente enquanto seu corpo todo se clareava. Saguí descobriu sua primeira e única paixão: o fogo.

Nesse momento, o quadro todo se enegreceu e um pequeno círculo dentado de luz começou a se abrir no centro da tela. A chama da fogueira parecia ter sido aumentada, pois agora a tela branca quase ofuscava os olhos de Rosana e ela não pôde se conter, aplaudiu e seus olhos se arregalaram mais do que ela achou que poderiam. Círculos de sombras dançavam com a iluminação, onde as formas eram desenhadas pela ausência de sombra e não por elas. Era quase como se guizo não trabalhasse a sombra e sim a luz. Rosana não ficou sozinha, a explosão de aplausos se estendeu por longos segundos, haviam assobios e urros, todos amaram. Cipriano sorriu muito orgulhoso de sua sincronia com os desenhos e por todos estarem amando aquela apresentação.

–Ha! Vejo que gostaram. Mas não parou por aí, como disse, era a primeira paixão de Saguí. Sua admiração pelo incêndio florestal, que devorava aquela parte da floresta, era algo que não se continha em seu coração.

A silhueta de Saguí surgiu na tela e a luz mais forte partia de seu peito e tinha o formato de um coração pulsante.

–Saguí queria tocar as chamas, sentia seu calor, sentia a vida se esvaindo de onde quer que o fogo tocasse, mas aquela ausência de vida fascinava aquela criança a ponto dela querer isso. Queria o fogo mais que tudo. Porém, seu povo a encontrou e a salvou de ser consumida pelas labaredas infernais. Depois, explicaram para Saguí que os raios podiam causar aquele tipo de coisa em períodos onde o ar e a floresta estavam mais secos e que aquilo trazia a morte definitiva, não se era possível gerar um fruto de uma cinza. Os anos se passaram e Saguí chegou a adolescência, aquele ser juvenil participava intensamente de sua comunidade, ajudava no que podia, trabalhava no que podia, mas sempre dava um jeito de escapar para ver a clareira que havia se formado após o incêndio.

As sombras daquele povo os faziam parecer completamente vivos e livres da vontade de Guizo. Parecia real. A imagem do crescimento de Saguí foi uma experiência única naquela noite, uma das várias. Ervígio chegou a cochichar para Rosana que Tronco sempre surpreendia a plateia e já estava com eles faziam anos.

–O que o tempo ensinou para Saguí, foi que de fato um fruto não sairia de uma cinza, mas as cinzas poderiam proporcionar uma renovação daquele local. Uma verdadeira revolução aconteceu ali durante anos e sob o olhar daquela jovem criatura. Agora haviam várias espécies novas de vegetais, trazidas pelas fezes de pássaros que vinham de outras regiões do mundo, havia um novo sentimento naquele lugar, uma existência havia dado lugar a outra e essa outra não necessariamente seria melhor, mas como tudo ocorreu de forma natural e orgânica, como vontades não foram impostas e a liberdade havia reinado no curso natural daquele lugar, aquela existência era bem vinda. Isso tudo aquecia o coração de Saguí.

Dessa vez as sombras giravam em torno do protagonista enquanto a tela revelava diferentes ângulos daquela personagem, arrancando mais uma salva de palmas, porém, mais rápida, pois todos estavam curiosos pela narrativa.

–Um dia, quando Saguí estava quase entrando em sua fase madura, houve outra terrível tempestade. Seu coração palpitava e seus sentidos percorriam toda a floresta, naquele dia relampejava muito e haviam acabado de passar por um longo período de estiagem. Seu coração pedia por mais um incêndio e seu desejo foi atendido. Seu povo mais uma vez meditava e aquela criatura apaixonada se lançou mata adentro para encontrar seu objetivo.

Os músicos de Guizo haviam tornado a música mais tensa, dobrando os sentimentos da plateia aos seus desejos e a guiando para o suspense.

–Saguí correu mais do que nunca, correu mais do que naquele primeira vez onde havia encontrado seu amor. A sensação era a mesma, aquele calor era o único objeto de desejo que poderia satisfazer seus anseios. Foi então que encontrou as labaredas enormes, viu aquela dança iluminada de água, fogo e fumaça. Saguí imediatamente subiu na árvore mais alta que encontrou e se lançou nos braços de sua paixão.

Mais uma vez a tela ofuscou a plateia e de forma repentina tudo se apagou e a única luz do acampamento vinha dos fogareiros quase extintos da janta de cada grupo e das estrelas. Aos poucos a tela foi se iluminando e revelando suas figuras.

–O povo todo pôde sentir o desaparecimento de Saguí e sabiam o que havia ocorrido. Sentiram seu corpo queimar e no dia seguinte só encontraram cinzas e um coração de madeira intacto. Todos se impressionaram com o coração não ter sido queimado e nem sabiam o motivo do fogo ter preservado aquele órgão específico. Mas eu digo a vocês, amigos, que aquilo significava que aquele amor era correspondido.

Nesse momento os corações de todos se apertaram de emoção.

–O povo então enterrou aquele coração e se deitou em torno dele para se conectarem com o que havia sobrado de Saguí. Meditaram por dias até que todos os corações batessem juntos, inclusive o de Saguí debaixo da terra. Aos poucos, cada um daquela grande família pereceu, mas continuaram vivos nos batimentos do coração que havia sido plantado e quando o último caiu, daquela madeira apaixonada começou a brotar algo novo e após anos, uma enorme árvore se formou. Nela havia outros vegetais, animais e todo o tipo de ser vivo, aquela árvore era um novo mundo nascido do fogo.

As sombras revelaram uma árvore que crescia frondosa.

–Mas a história não acaba aí e é aí que entra o motivo de eu contar essa história hoje. Dizem que um velho carpinteiro muito habilidoso resolveu acabar seus últimos dias fumando de forma simples e num simples cachimbo. Passeando pela floresta, encontrou a enorme árvore, quando a tocou, sentiu algo em seu peito que não soube entender e de um galho caído fez seu cachimbo. O carpinteiro morreu em paz enquanto fumava e o coração de Saguí, que um dia esteve no interior das chamas, agora poderia conter as brasas de seu amor dentro de si.

A música encerrou e Cipriano se curvou para o público que havia levantado assobiando e aplaudindo. Todos correram para parabenizar seu rei, inclusive Rosana. Mais tarde, o dono da bela capa verde havia instalado a aprendiz num quarto em sua carroça. Os dois conversavam sobre aquela noite e Rosana não parou de tecer elogios para Guizo e seu anfitrião. Mas então Cipriano se levantou, foi em outro quarto e voltou com uma caixa.

–Aqui está, como prometido, para abrir basta apertar a tampa da caixa assim. Veja como é simples e belo.

–Senhor rei, eu amei tudo isso, essa história me fez chorar muito no final. Todos alcançaram uma morte digna e cheia de significados, todos conseguiram, de certa forma, alguma plenitude. Sempre tento ser a melhor no que faço, mas nunca consigo ter a certeza de que está bom, queria poder ter a plenitude de algo que fiz.

–Entendo seu desejo, Rosana, e espero que Andrei consiga te ajudar com seus ensinamentos. Como aconteceu com aquele povo, a eternidade era boa, mas o ápice de suas vidas não foi quando fizeram algo perfeito, foi quando se conectaram com algo e acredito que talvez possa faltar isso em você.

–Hmm, parece algo bem subjetivo de se conseguir… mas espero chegar lá!

–Ha! E vai conseguir, estarei aguardando o dia de contar a sua história e fazer meu povo feliz.

–Será uma honra, senhor!

Após mais uma breve conversa, se despediram e Rosana foi dormir. No dia seguinte ela tomou café com Ervígio e sua família e ainda conversou mais com Guizo e Cipriano. Seu coração se apertava por ter de partir, havia se sentido muito acolhida e todos eram muito amáveis, talvez suas únicas falhas estivessem contidas em suas práticas comerciais. Chegou a perguntar como Guizo fazia aquelas sombras e apenas descobriu que “este segredo só os mortos podem saber” e que era para ela levar aquilo como um “incentivo” para alcançar seus sonhos, o que frustrou a alquimista, mas de fato construiu outro motivo para ela continuar seu caminho e buscar conquistar seus objetivos antes de morrer.

Após todas as despedidas, Rosana pegou o mesmo caminho para voltar. Agora trazia sua ceroula numa pequena mochila, a caixa com o presente para seu mestre e as memórias visuais e auditivas de uma história que a tocou profundamente. Nenhuma erva em seu caminho a distraiu de seus pensamentos e lembranças, ou até mesmo da saudade daquelas pessoas que havia acabado de conhecer. Quando ela chegou no enorme carvalho onde vivia seu mestre de forma semelhante ao povo da história, ouviu um choro muito baixo e que se intensificava a medida que se aproximava do cômodo onde provavelmente encontraria seu Andrei. Lá, sobre uma rocha, havia chorando um senhor decepcionado e com um olhar vago. Quando ele a viu, rapidamente se aprumou.

–Caraca velho, se você queria morrer, vai conseguir, porque vou te matar! Onde você tava? Primeiro quebram o meu cachimbo e depois você some assim? Por favor, me diz que está de ressaca! Você perdeu umas apresentações fenomenais no sarau, batalha de rima e tudo.

–Me perdoe, fui convidada pelo líder da caravana para dormir lá. Ele disse que era seu amigo, é o Rei Cipriano da Capa verde!

–Não conheço.

–Como não conhece, senhor? Ele disse que seu cachimbo que foi quebrado era o dele, porque você tinha ganhado numa aposta!

–Ah! Era esse o nome dele?

–Ele disse que o senhor tomou alguns preparados para lutar, que vocês brigaram e se tornaram amigos por uma semana.

–É, acho provável que isso tenha acontecido, mas na real não lembro muito daquela semana, como muitas outras… mas e aí, achou um cachimbo batuta?

–Mestre, achei O Cachimbo, está aqui. Veja!

–Que maneiro! E esse cachimbo tem uma história daora também? Você passou a noite toda fora, espero que seja uma história épica, porque morri de preocupação aqui!

–Mestre, senta aqui, que você vai amar ouvir isso.

Andrei acendeu seu novo cachimbo e se reclinou para ouvir a tão aguardada história.

Assinado, Antonio Core.

Antonio Core
Enviado por Antonio Core em 05/05/2024
Código do texto: T8056978
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