O Vô Antônio

Um menino estranho certa feita apareceu na casa do Vô Antônio. Trazia consigo, atada às costas, apenas uma trouxinha com os pertences adquiridos ao longo dos seus sete ou oito anos de sôfrega existência. Dissera ao meu Vô que o pai morrera vítima de acerto e a mãe nunca se soube o sucedido – sabia-se apenas ser uma moça muito jovem, bela, e consequentemente muito pobre e franzina, características que despertavam a lascívia da maioria dos homens da nossa cidade.

Era, então, agora desafortunada a família por completo, um inteiro solitário no mundo, um miserável, sem eira nem beira, pronto a padecer de necessidades nas quentes noites Paraibanas. Não houvesse encontrado a casa do Antônio, e as comidas saborosas da tia Fafá, certo estaria desgraçado; e mais, bastaria apenas um doido encontrá-lo solto, sozinho na rua, para fazer uma besteira. Deus o livre, disse-nos.

O coração bom do Vô acatou, engoliu com farinha e arroz a conversa do menino branquinho, magro de dar pena, e deixou-o permanecer em nossa casa conquanto pudesse mantê-lo. Nunca tivemos contato; observava-o apenas de longe, na minha despretensão de espectador incorrigível.

Ali ficou por longos e longos anos, cresceu, adquiriu corpo e traços de gente e enquanto tomava uma forma física exagerada, passou a ter atitudes incomuns. Nos dias que antecediam as noites de São João, todos os anos, sumia misteriosamente por uma ou duas madrugadas e retornava, sempre de manhã, pelado dos pès à cabeça. Chegava mudo, sem emitir qualquer palavra, nos olhava de forma estranha, até assustado, e ia direto ao quarto. Horas depois acordava como se fosse qualquer dia normal. Dava boa tarde, sentava-se para tomar café e comia os bolos e as tapiocas de tia Fafá numa ferocidade enorme, abocanhando tudo como se visse comida pela primeira vez na vida.

— Onde era que tu tava? Isso é amizade. Isso é envolvido com amizade – concluía o Vô e dizia de si para si.

—Mais bolo menino? A Tia dá, toma!- dizia Fafá e em seguida cortava um pedaço do bolo e estendia-o ao jovem, sem questionar o motivo das suas andanças noturnas.

– Não quero, não. Tô cheio. – respondeu depois de devorar metade dos itens à mesa.

– Queres outro copo de café? Tem queijo, tem goiabada…

– Isso é amizade! – começava a enfurecer-se meu avô - Isso é envolvido em conversa de amizade ruim, resmungava enquanto levantava da mesa.

Embora falasse num tom inquiridor, esperando uma resposta, não a fazia de forma clara, pelo contrário, era até meio disperso, inconclusivo. Falava por devaneios, como que por alto, acreditando ser suficiente para que o jovem entendesse.

– Essas horas… dormindo - ralhava - nessas horas já fui na feira e voltei, continuava.

O menino nada dizia. Terminado o café, voltava para seu quarto e dali só sairia mais tarde, à noite, para a janta e depois para perder-se novamente no mundo.

Foi nesse ínterim que, no dia vinte e quatro de Junho, saiu na calada da noite ao seu destino. Os fogos e as bombas para São João já ribombavam aqui e ali pelas ruas. As fogueiras, acendidas a poucas horas, emprestaram ao ar um cheiro de madeira velha queimada. Estrépitos soavam, as chamas lambiam devagarzinho a lateral das espigas de milho e o menino, por entre o alarido dos rojões e o calor das labaredas, caminhava à sorte de Deus. Eu seguia seus passos com os olhos e acompanhava todo e qualquer movimento. Se virasse à direita, em direção ao mercado Central, também eu virava, se puxasse em direção ao Liceu, puxava eu também, sempre de canto de olho e sempre à espreita. Numa dessas virou-se por completo e, certamente já sabendo o encalço que eu o pusera, olhou-me nos olhos.

– Vem por cá, Juca. Vem por cá - disse, tomando-me pela mão.

– Entramos por cá, Juca. Entramos por cá - tornou a dizer.

Uma sensação de medo e estranhamento apoderou-se de mim e lembro de ter vontade de recuar, ficando nesse misto de pavor e curiosidade.

– É sem roupa, Juca. É sem roupa! - disse num enlevo de quem sabia o que estava dizendo e, antes que pudesse finalizar a sentença, já estava completamente despido dos pés à cabeça.

Tocou-me no peito, bem no meio, e fez um movimento com os dedos, na certa tentando desabotoar minha camisa xadrez. Cedi e deixei com que continuasse; não fiz mal. E com que agilidade ele o fazia e com que delicadeza!

Por fim estava eu também desnudado.

Dei-lhe a mão sentindo um temor enorme. A força física exagerada do agora não tão menino assim me subjugava. Quis ter a liberdade inerente àquele ser. Quis saber, agora findando-se o mistério, quem era e porque se instala ali em nossa vida. Embora o menino tenha surgido do aparente nada, chegado numa noite como qualquer outra, fiquei com a sensação de que ele sempre estivera ali presente.

Nus, lado a lado e de mãos dadas, caminhávamos pelas ruas da nossa cidadezinha naquela noite quentíssima. Em dado momento ajustamos o passo e paramos bem rente a uma fogueira gigante, com suas labaredas flamejando muito alto, de modo que suávamos com o calor.

Então justamente nesse momento entendi.

– Foi o Vô Antônio, não foi? Foi o Vô… - perguntei e estremeci.

JS Marinho
Enviado por JS Marinho em 07/05/2024
Reeditado em 07/05/2024
Código do texto: T8057975
Classificação de conteúdo: seguro
Copyright © 2024. Todos os direitos reservados.
Você não pode copiar, exibir, distribuir, executar, criar obras derivadas nem fazer uso comercial desta obra sem a devida permissão do autor.