Jerry Bocchio e os Ratos na Padaria – Capítulo IV: Um Antigo Aliado

O advogado Maurício Porteau e eu estávamos conversando no meu escritório para bolar um plano. Nossa intenção é ir até o consultório do Doutor Álvaro Boa Morte (que ninguém vai me convencer que é um nome bom pra ser médico) e ver se ele ainda está nessa de emitir atestados e laudos falsos para pacientes.

Só pra contextualizar caso você pegou o bonde andando: o Doutor Álvaro Boa Morte é o médico que assinou o laudo do exame que detectou pêlos de rato na comida servida pela Padaria Nova Caledônia que um cliente ingeriu. Esse laudo está sendo utilizado como prova num processo por esse mesmo cliente contra a padaria. O problema é que esse médico tem histórico na justiça por fraudar atestados.

O problema do nosso plano é: como convencer um suposto médico fraudulento a dar um atestado falso pra um detetive e um advogado? Eu tenho a resposta na ponta da língua: disfarces! Mas, parece que o advogado não é muito fã desse tipo de abordagem. Eu disse que não gosto de trabalhar com advogados por perto.

Enfim, estava lá o advogado tentando me explicar porque eu deveria evitar disfarces:

– Detetive, isso daria munição para eles. Eles vão dizer que o médico foi levado a erro e criou provas contra si mesmo.

– Ah, que saco! Tudo é isso agora? O que o senhor sugere, então?

– Precisamos encontrar alguém que ele tenha dado um atestado ou um laudo falso recentemente e convencer essa pessoa a testemunhar.

– Rapaz, você fez faculdade pra isso? Primeiro, pra saber quem foi consultar com esse médico, tem que pegar os registros da clínica, o problema é que a área da saúde não é muito fã de liberar documentos dos pacientes; Segundo, se alguém pediu um documento fraudado, você acha que estaria nos registros da clínica? O cara já foi pego uma vez, gato escamado tem medo de água fria...

– Escaldado!

– Como?

– O certo é: "gato escaldado tem medo de água fria", não "escamado".

– Aaaah! Bem que eu achava que esse ditado não fazia sentido! Afinal, peixe tem escamas e gosta de água fria, né? Por que um gato escamado não iria gostar? Beleza, deixa eu corrigir no meu caderno aqui.

– Mas essa relação também não... Ah, deixa pra lá! Você ia continuar, detetive?

– Ah, é mesmo! E terceiro, você acha mesmo que alguém com um documento fraudado ia mesmo aceitar depor em um tribunal? "Oh, esse médico me deu um atestado falso pra eu faltar no trabalho". Isso é crime! Ninguém ia aceitar isso.

O advogado Maurício começou a andar em círculos pelo escritório com os braços pra trás e a cabeça baixa, com ar pensativo. Foi quando ele falou:

– Detetive, sua ideia também tem falhas. Se, ao menos, fosse uma operação da Polícia, o médico poderia ser pego em flagrante.

– Quer dizer que precisa envolver a Polícia nisso?

– Sim, pelo menos teríamos uma denuncia oficial. Só que eu não acho que a Polícia ia atrás de um médico somente com uma suspeita.

Nesse momento, me veio à mente chamar o meu amigo Tom, investigador da Polícia. Nós éramos parceiros quando eu ainda trabalhava lá. Eu só peguei minhas coisas e disse para o advogado:

– Vamos dar um pulo na delegacia.

E assim nós fomos até a delegacia. Tom continuou sendo meu amigo mesmo depois de eu sair da Polícia. Nós costumamos ir até a Padaria Nova Caledônia no fim do expediente, quando não temos que ficar até um pouco mais tarde em nossas investigações, claro. Como ele também gosta de lá e conhece todo mundo, acho que ele vai querer nos ajudar. Só espero que ele não esteja ocupado com algo muito sério.

Chegando na delegacia, eu fui direto na mesa do Tom:

– E aí, Tom?

– Fala, Jerry! Tá fazendo o que por aqui?

– Eu queria saber se você tem disponibilidade pra me ajudar em um caso.

– Um caso? Você diz um caso seu? Sobre o que é?

– Eu comecei a investigar o fechamento da Padaria Nova Caledônia. Eu descobri que ela foi sabotada.

– A Padaria Nova Caledônia foi sabotada? Bem que eu achei essa história estranha mesmo. Mas, se você já descobriu, pra que precisa da minha ajuda?

Após essa pergunta do Tom, só ouvi a voz do Capitão Lester Gregade, aparecendo de surpresa na conversa:

– Tentando cooptar meus policiais, detetive Bocchio?

– "Cooptar"? Mesmo depois que eu saí da corporação o senhor continua falando difícil comigo, Capitão? "Cooptar", "intransigente", "vaso sanitário"...

– Escute bem, detetive Bocchio, o Mangalvo não é um contato particular seu da Polícia para te ajudar em casos de ligações clandestinas de luz ou traição.

– Capitão, primeiro, faz tempo que eu não pego casos de traição, graças a Deus! Segundo, dessa vez é um caso de suspeita de fraude em perícia médica.

– Ah, é? E com base em quê? Na sua intuição?

Nessa hora, o advogado Maurício Porteau se envolveu na conversa:

– Capitão Lester Gregade, eu sou o Doutor Maurício Porteau, tudo bem?

– "Doutor"? O senhor é médico?

Detalhe: o Capitão Gregade também não gosta muito de advogados, aliás, quase ninguém da delegacia gosta. A expressão no rosto do advogado era de quem estava engolindo um sapo.

– Certo, entendi seu ponto! Enfim, eu também pensava a mesma coisa do detetive Jerry Bocchio. Pra mim, o caso já tinha se encerrado, enquanto pra ele, ainda parecia faltar explicações. Até que eu percebi que os laudos eram assinados por um médico que já tem histórico em fraudes.

– O senhor fala do Álvaro Boa Morte?

– Esse mesmo.

O Capitão Gregade parou por uns instantes com os braços cruzados e olhando para baixo. Pelo visto, esse Álvaro Boa Morte tem histórico grande aqui. Também, um médico chamado "Boa Morte"! Não sei como ninguém suspeitou disso antes. O Capitão, depois de pensar, virou para o Tom e disse:

– Mangalvo, a decisão é sua, mas se alguém der parte na Polícia, te mando pra corregedoria sem pestanejar, entendido?

"Pestanejar"? Que porcaria é essa?

Tom virou sua cadeira giratória em nossa direção, todo animado, mas controlando a empolgação:

– É isso aí! Tom e Jerry de volta na área!

– Você ainda não assistiu "Tom & Jerry", né Tom?

– Não, mas isso não vem ao caso. Enfim, o que você precisa?

Expliquei toda a situação para o Tom, que aceitou participar. Só que após o final do turno dele, pois se tratava de um caso que a Polícia não estava envolvida. Ele combinou comigo de nos encontrarmos na rua do lado da clínica. O advogado Maurício pediu para ir junto, disse que queria que o caso fosse o mais dentro da lei possível, já que o tal requerente era irredutível.

Dito e feito, Maurício e eu fomos até a rua que Tom havia indicado. O carro do Tom já estava estacionado, nos esperando. Maurício estacionou seu carro atrás do de Tom. Descemos do carro de Maurício e fomos até Tom, que abriu as portas para entramos. Eu sentei no banco do carona e Maurício, no de trás. Tom nos cumprimentou e foi puxando alguns aparelhos de dentro de sua mochila, que estava no banco de trás. Então, Tom começou a falar seu plano:

– É o seguinte, Jerry: eu preciso pegar o médico dando atestado falso no flagra para poder dar voz de prisão. Então eu preciso que você coloque esse ponto no ouvido e esse microfone de lapela. Ah, e deixe disfarçado o microfone.

– Tá, mas e o ponto? Ele não vai perceber?

Tom puxou uma jaqueta de moletom da mochila.

– Coloca essa blusa aqui e põe o gorro por cima da orelha, beleza? Agora, você vai lá fingir que é um paciente dele, eu já marquei o horário. O nome que você vai usar é Jefferson de Santana. Fala que você quer um atestado pra, sei lá, inventa aí. Você é criativo com essas coisas.

– Pode deixar, Tom. Aliás, essa blusa já me deu uma ideia.

– É isso aí! O gato e o rato se unem pra pegar o cachorro!

Eis que Maurício entra na conversa:

– Quando você chama a vocês de "Tom e Jerry", você está fazendo uma referência ao desenho, policial?

– É! Nós somos parceiros que nem o gato e o rato do desenho.

– Na verdade, eles não são amigos, são inimigos. Eles ficam tentando matar um ao outro no desenho. Você nunca viu?

Tom fica surpreso com a informação e fala para mim:

– Caramba! Por que você nunca me avisou, Jerry?

– É que eu não queria estragar sua empolgação hehehe. Mas eu falava pra você assistir o desenho.

– Poxa! E pensar que eu baixei todos os episódios pra minha filha eu assistirmos quando ela for maiorzinha.

– Você baixou o desenho todo e não assistiu nenhum episódio sequer?

Maurício se mete na conversa de novo:

– Não, pior! Você é policial e baixou conteúdo pirata da internet?

Tom e eu nos olhamos após a pergunta de Maurício e, simplesmente, começamos a rir descontroladamente. Após me recuperar da crise de riso, coloquei os aparelhos, a blusa e um óculos escuros que eu tinha no bolso e saí do carro ainda falando "ai, ai". Esses advogados se acham espertos, mas são bem mais infantis que nós, detetives.

Enfim, lá vou eu, mostrar mais uma vez meu brilhantismo para pegar um médico de araque.

Continua...